sábado, 25 de junho de 2022

Renascimento - Poesia Camoniana

 Renascimento - poesia Camoniana

'Por que razão Luís de Camões é considerado um renascentista?'

A ' par dos humanistas seus contemporâneos, Camões é um dos que melhor recuperam a cultura greco-latina, seja em formas poéticas revisitadas, seja na dignificação do maravilhoso pagão em que também se apoia a sua épica. Conceitos de 'inspiração' (do Íon platónico) ou de mimese (imitação) aristotélica são igualmente aproveitados por quem acredita no Homem como medida das coisas. Esta crença, obscurecida em certos sonetos e canções ou, mesmo, em partes d'Os Lusíadas (donde falar-se num Camões maneirista), acompanhava a descoberto de novos mundos, o que aos portugueses grandemente se deve, e foi superiormente cantado pelo Poeta. Há, nele, lugar para a experiência e, se o respeito pelo antigo não esmorece, já a afirmação do saber experimental (aquele «vi claramente visto»), da vitória dos homens sobre os elementos, é a outra face de um processo, pessoal e colectivo, em que gregos e latinos também se inscrevem por terem sido vencidos, no canto épico e em feitos, por seus filhos civilizacionais. É nesta herança que se conforma o Renascimento e, concretamente, um Camões, capaz de unir a mitologia pagã e a cruzada da Fé católica na figura de um herói ao serviço, não de si mesmo, mas da nação e do seu rei.'

O período renascentista foi caracterizado pela expansão da navegação, comércio e sistema bancário, crescimento das cidades, enriquecimento da burguesia, declínio do poder da Igreja e surgimento dos estados nacionais, bem como pelo cultivo da alegria, luxo e prazer nas cortes, em contraste com o rigor medieval. Burgueses e nobres buscam a satisfação material. O homem é colocado no centro do universo. Novos estudos e descobertas acontecem na medicina, astronomia, navegação, nas artes e outros campos do saber. Galileu desenvolve o telescópio e questiona o heliocentrismo; Piero della Francesca cria a perspectiva na pintura. “Criaram-se instrumentos mais adequados para a navegação, observação astronômica e medição do tempo. Os novos conhecimentos e técnicas puderam ser divulgados graças ao aperfeiçoamento do papel e dos métodos de impressão. Com a possibilidade de reprodução em maior número e com maior rapidez, cresceu a circulação de livros”, escrevem Izeti Fragata Torralvo e Carlos Cortez Minchillo.  No Renascimento, também chamado de Humanismo, acontece também a revalorização da cultura greco-romana, a partir da tradução de textos clássicos de arte, filosofia e ciência da Antiguidade, de autores como Aristóteles, Platão, Homero, Virgílio. “A obra desses filósofos e artistas, produzida antes da era cristã, evidenciava a grandeza humana, revelando o poder do homem de gerar idéias e praticar importantes ações. Dessa visão gloriosa originou-se uma concepção humanista que se reflete na produção artística do Renascimento”, afirmam Torralvo e Minchillo. 

Segundo Geir Campos, “o Renascimento era, a bem dizer, uma volta ao homem, depois do longo e sombrio túnel da Idade Média. Esse formidável surto de confiança no ser humano tinha uma série de razões práticas: a invenção da bússola, aplicada no Ocidente desde 1300, a declinação magnética (fundamental para a navegação oceânica) verificada por Colombo em 1490, a fabricação de armas de fogo com mecha em 1400 e com espoleta em 1500, os vidros de aumento combinados em lunetas no século XIV, a invenção da gravura em fins desse mesmo século, a invenção da prensa com tipos móveis em 1440, a industrialização do ferro em altos fornos, as novas formulações da astronomia e da trigonometria, as grandes navegações e os descobrimentos marítimos, o sistema heliocêntrico de Copérnico, a reforma da cronologia juliana por Gregório XIII, o interesse crescente pela natureza e pela pessoa humana – tudo isso dava lugar a um clima de euforia revolucionário.”

É nesse contexto histórico e cultural que se desenvolve a obra do maior poeta português de todos os tempos: Luís Vaz de Camões.  

A lírica de Camões – composta de sonetos, canções, odes, sextinas, poemas em redondilhas, em estilo trovadoresco – recebeu forte influência do doce estilo novo, tendência literária surgida na Itália, no século XVI, e trazida a Portugal em 1527 por Francisco Sá de Miranda. O gênero poético mais praticado pelos poetas do doce estilo novo era o soneto petrarquiano, dividido em dois quartetos e dois tercetos, com rimas distribuídas na sequência A-B-A-B A-B-A-B C–D–C-C–D e métrica decassilábica.

Sextina: poema composto em seis estrofes, de seis versos cada.

Oitava: estrofe de oito versos.

Écloga: poesia pastoril dialogada.

Elegia: poema de tema triste ou relacionado à morte.

Ode: composição de caráter elogioso, dedicado a deuses, reis, heróis ou atletas.

Conforme escreve Geir Campos:

“Nas Rimas, editadas postumamente em 1595, o poeta praticou a ‘medida nova’, escrevendo textos de nítida influência italiana, bem nos moldes renascentistas; isto é, adotou frequentemente a estrutura do soneto, o verso decassílabo, a postura racional e filosófica (...). Até mesmo o sentimento amoroso — tema comum na lírica renascentista — é submetido a uma compreensão lógica por meio da qual se busca uma verdade genérica, universal. (...) Essa atitude reforça o compromisso com a especulação racional, típica do homem renascentista. (...) Camões interpreta suas experiências amorosas de modo idealizante, não se distanciando das concepções neoplatônicas comuns aos homens cultos do seu tempo. Valoriza-se o impulso amoroso em uma dimensão de pureza, de imaterialidade do pensamento, alheio a interesses e desejos sensuais.”

A esse respeito, escreve Ivan Teixeira:

“Camões entende o amor como um meio para o aprimoramento do caráter, cuja perfeição, na época, exigia também o convívio com as armas. Saber amar era uma delicada virtude do Renascimento, virtude transformada em disciplina filosófica. A sua prática aproximava o homem de Deus, na medida em que apurava o conhecimento da Beleza, projeção máxima do esplendor divino. O amor em Camões confunde-se com o logos, isto é, só atinge plena existência mediante a expressão verbal. Camões não se preocupa propriamente em amar, no sentido corriqueiro de posse da amada; está mais interessado em falar do amor.

As contradições amorosas não são as únicas analisadas na obra camoniana. São também tematizados os dilemas humanos, a sensação de impotência diante do destino. Cria-se um universo de incertezas e desestabiliza-se a sensibilidade do poeta, que passa com freqüência a se revelar melancólico, depressivo.

O poeta se debate na tentativa de entender os opostos inconciliáveis, como a justiça e a injustiça, o eterno e o efêmero, o incerto e o previsível. No nível da linguagem, verifica-se a constância das antíteses, dos paradoxos. Tais temas e recursos estilísticos antecipam características do Barroco (século XVII).”

Principais temas da poesia lírica de Camões:

— instabilidade dos sentimentos e da realidade
— ideal de perfeição, física e moral
— desconcerto do mundo
— amor idealizado
— perda da amada
— o próprio trabalho poético

A épica camoniana

Diz o poeta e ensaísta norte-americano Ezra Pound: “Os Lusíadas são, de acordo com Hallam, ‘a primeira tentativa bem-sucedida na Europa moderna de construir um poema épico sobre o modelo antigo’.” O tema é adequado ao tempo; é a viagem de Vasco da Gama, com interpolações da história de Portugal. Essa viagem foi feita em 1497-99. Camões nasceu em 1524 e Os Lusíadas foram publicados em Lisboa em 1572. Camões tem entusiasmo suficiente para escrever uma epopéia em dez livros sem se deter uma só vez para qualquer tipo de reflexão filosófica. Ele é o Rubens do verso. (...) Os Lusíadas têm mais valor que um romance histórico: eles nos dão o tom do pensamento da época.”

Ivan Teixeira escreve a respeito da poesia épica:

“A epopéia era a forma poética mais importante nos tempos heróicos da Grécia homérica, mais ou menos entre os séculos XII e VIII antes de Cristo. (...) O verso hexâmetro funcionava esplendidamente para o registro das façanhas e das lendas do homem grego. (...) Os cantos homéricos exaltavam a astúcia, a força, a coragem, a amizade, a hospitalidade, a obediência aos deuses e a fidelidade aos reis. Nos combates ou nas aventuras, venciam as pessoas de coração mais forte, porque estas eram as preferidas dos deuses. Sendo longas narrativas de exaltação do cumprimento do dever cívico e religioso, os poemas homéricos vinculavam-se estreitamente aos interesses e à sensibilidade de então, porque redimensionavam artisticamente as guerras, as viagens, os mitos e as lendas do povo, pondo em evidência suas crenças e seus valores.”

Os Lusíadas, de Camões, “aproximam-se mais da Eneida que dos poemas homéricos não só do ponto de vista da importância de um sobre o outro, mas também do ponto de vista da história de sua redação. Tal como Virgílio, Camões compôs sua epopéia com o propósito político de legitimar pelas letras a história portuguesa, desde suas origens míticas na Idade Média até a expansão mercantilista no Renascimento, dando ênfase à descoberta do caminho marítimo para a Índia, levada a efeito por Vasco da Gama entre 1497 e 1499”.

“Camões embarcou para o Oriente, onde viveu quase vinte anos, viajando de um lugar para outro, a serviço do exército português. (...) Boa parte de Os Lusíadas foi escrita em Goa. O resto foi sendo composto ao sabor das viagens, pelos lugares em que o poeta passava, em sua agitada vida de soldado e de aventureiro. É célebre a lenda de que, por pobreza, escreveu trechos dos Lusíadas numa gruta de Macau, na China, em péssimas condições materiais. O fato de o maior poema da língua ter sido parcialmente escrito no Oriente põe em destaque o internacionalismo de Portugal no século XVI. Por outro lado, revela o aspecto verdadeiramente renascentista da vida de Camões, o que impediu seu espírito de se limitar ao universo geográfico e cultural da Europa. O poeta acreditava no discurso dominante da época: para ele, a história portuguesa tinha uma missão civilizadora a cumprir no mundo, impondo aos quatro cantos sua religião e sua doutrina política.”

Há nos Lusíadas “incríveis batalhas medievais, saborosas interferências dos deuses pagãos no universo cristão, surpreendentes incidentes da vida marítima: perigos, tempestades e outros fenômenos naturais, o inventário da vida exótica do Oriente, a celebração do amor físico (...), a versão poética de lendas pagãs”.

Na época, a expansão européia do Cristianismo se confundia com o ideal da guerra santa. “Apesar da exaltação da guerra, o poema de Camões apresenta diversas passagens que conflitam com o gênero épico e se aproximam do gênero lírico, que põem em relevo as ternuras do amor ou as incertezas do indivíduo.”


DIVISÃO INTERNA DO POEMA

Diz Ivan Teixeira:

“As epopéias antigas, inclusive a Eneida, possuíam uma introdução formular, que se dividia em duas partes: a proposição e a invocação. Quase sempre fundidas num só pensamento, essas partes continham o anúncio do assunto e o pedido de inspiração às musas.”

“A essas duas partes tradicionais, as epopéias renascentistas acrescentaram uma terceira: a dedicatória, na qual se exaltavam as virtudes políticas, religiosas e guerreiras do rei ou de um nobre importante, os quais retribuíam a gentileza com a edição do trabalho e com alguma proteção financeira.”

“Depois da dedicatória, iniciava-se a narrativa, arrematada por considerações morais chamadas epílogo.”


DIVISÃO EXTERNA DO POEMA

Prossegue Ivan Teixeira:

“Externamente, Os Lusíadas dividem-se em 10 cantos, os quais se subdividem em estrofes de oito versos decassílabos cada uma. Essas estrofes chamam-se oitavas-rimas. Nos seis primeiros versos, as rimas são alternadas; nos dois últimos, emparelhadas.”

Decassílabos heróicos (sexta e décima sílabas) e sáficos (quarta, oitava e décima sílabas).

Os Lusíadas compõem-se de 1.102 estrofes, perfazendo um total de 8.816 versos.”

“Há diversos narradores em Os Lusíadas, todos dominados pelo espírito de celebração nacionalista. O mais importante deles é a persona ou personagem épica, espécie de entidade abstrata que nos conta a história. Trata-se de uma voz impessoal, que se confunde com a de um poeta inspirado pelas musas.”

Outros narradores do poema são Vasco da Gama e a ninfa que, durante o banquete na Ilha dos Amores, prediz o futuro dos portugueses, incluindo o descobrimento do Brasil.

Os navegantes voltam a Lisboa dois anos após sua partida.

“Pelo que ficou exposto, pode-se concluir que há dois planos em Os Lusíadas: o plano histórico, dominado pela crônica dos feitos que conduziram Portugal à condição de grande nação européia, e o plano mítico, dominado pela presença dos deuses da mitologia greco-latina.”

“O plano mítico envolve sobretudo a presença de Vênus, deusa do amor, e a de Baco, deus do vinho. Vênus protege os portugueses durante a viagem; Baco os atrapalha.”

“Essa ficção mitológica” (o Concílio dos Deuses, no Canto I) “tem tudo a ver com a estrutura artística do poema, porque indica que sua narrativa oscilará entre o domínio de Marte (guerra, epopéia) e o de Vênus (amor, lirismo), o que corresponde à dualidade de gêneros literários de que se falou acima. Nesse sentido, o episódio (...), um dos mais belos do poema, possui também função metalingüística, razão pela qual o poeta o colocou bem no início da narrativa, a partir da estrofe 20 do primeiro canto.”

“Além disso, há interferência dos mitos católicos, dos quais o exemplo mais consagrado é a Batalha de Ourique, na qual o próprio Cristo teria auxiliado Afonso Henriques a deter os árabes em seu avanço contra as terras cristãs.”


SOBRE A EPOPEIA

“Epopeia é a narrativa em versos de uma estória com significação nacional e universal. (...) Nesse sentido,  Os Lusíadas, em vez de celebrarem as glórias portuguesas, celebram antes o início das relações marítimas entre Ocidente e Oriente.”

“Embora fundada na história das elites de um povo, a epopeia deve incorporar lendas, mitos e tradições populares. Além disso, deve conter viagens, guerras e, no mínimo, um banquete. A função do banquete na epopeia é servir de cenário para o canto de um aedo, cujo conteúdo pode ser a síntese de aventuras passadas ou a profecia de conquistas futuras. Em ambos os casos, o aedo funciona como narrador paralelo de matéria que não cabe na estória central da epopéia, mas possui importância para sua significação geral.”

 “Assim, uma epopeia não se caracteriza apenas pelo assunto heroico nem somente pelo tom de celebração nacional. Deve também conter alguns elementos formais estabelecidos pela tradição, como as interpolações de casos menores no argumento central. Outro traço típico da epopeia é iniciar a narrativa no meio de sua ação” (in media res, ou “começar pelo meio das coisas”, expressão extraída da Arte Poética de Horácio.)

 “Estes requisitos são importantes para a caracterização do discurso épico. Mas nenhum deles talvez seja tão importante quanto a elevação da linguagem. O estilo épico deve ser sublime, não apenas no sentido de envolver grandiosamente o leitor, mas sobretudo no de revelar profundo e sábio convívio com os segredos da língua em que é escrito.”

O poeta épico deve “incorporar vocábulos correntes, vocábulos arcaicos, exóticos, vocábulos latinos, vocábulos gregos. Além de observar a tradição, um grande épico deve inventar palavras e propor usos imprevistos aos olhos dos gramáticos e das forças conservadoras do idioma”.

 “As inovações de uma epopeia não devem restringir-se ao nível vocabular do idioma, precisam atingir também o nível sintático e fonológico. E a riqueza sintática e sonora da epopeia camoniana não tem tamanho. A principal fonte de suas inovações era o latim clássico, mas nem por isso o poeta deixou de acatar sugestões da língua falada em seu tempo.”



 





 


 fontes:

in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/renascimento-luis-de-camoes/15247 [consultado em 25-06-2022]

http://poesiaportuguesaunip.blogspot.com/2014/03/luis-vaz-de-camoes-poeta-do-renascimento.html

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