quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Sentido literal do verbos [simultaneidade]

O sentido dos tempos verbais

O imperativo bíblico e o presente histórico rompem a cronologia e expressam noções diferentes das formas convencionais

Há alguns anos, o exame vestibular da Unicamp trazia, em uma de suas questões, trecho do poeta e cronista Bastos Tigre (1882-1957), autoapelidado D. Xiquote. O fragmento brinca com um uso particular do futuro do presente, o chamado "imperativo bíblico":

Não fartarás – prega o Decálogo e cada homem deixa para amanhã a observância do sétimo mandamento.

citado por Mendes Fradique em sua Gramática Portuguesa pelo Methodo Confuso, 1928)

Todo tempo verbal possui um emprego mais evidente, que define seu uso literal. Por exemplo, a função "normal" do futuro do presente do indicativo é insinuar algo de ocorrência posterior ao momento em que se fala (como em "Domingo irei à praia"). Este é o uso literal.

Por outro lado, há empregos das formas verbais que, embora corretos, são menos frequentes. São usos não literais; expressam noções diferentes das sugeridas pela denominação do tempo verbal. É o caso do decálogo bíblico, que utiliza o futuro do presente com um valor equivalente ao imperativo (modo verbal que expressa ordens, pedidos, súplicas, mandamentos).

Situação semelhante é muito encontrada nos jornais diários. Por exemplo, a Folha de S. Paulo de 2 de março, quinta-feira, trazia a seguinte notícia:

"Vila Isabel vence o Carnaval no Rio"

Esse é um fato bem conhecido dos leitores de jornal. As notícias podem referir-se a fatos presentes ou passados, mas seus títulos quase sempre trazem formas verbais no presente. Afinal, a imprensa diária precisa mostrar notícias "quentes". 

Daí o recurso ao presente histórico, ou seja, o emprego do tempo verbal presente para referir-se a fatos ocorridos no tempo cronológico passado.

Substitutos do Imperativo

O emprego do modo imperativo pode às vezes parecer muito autoritário. A língua apresenta, então, alguns mecanismos para atenuar esse caráter pesado do imperativo.

Por exemplo, um enunciado como o seguinte pode, em muitas situações, parecer exagerado:

"Busque-me um copo d'água".

Se a intenção não for de humilhar o interlocutor, podemos optar por uma forma mais branda:

"Você me busca um copo d'água?"

 Agora, além da transformação do pedido em uma pergunta, substituímos a forma imperativa "busque" por uma do presente do indicativo, "busca", o que enfraquece o tom autoritário do enunciado. Também é possível utilizar o futuro do pretérito.

"Você me buscaria um copo d'água?"

Às vezes, inclusive, a intenção de ser gentil leva a uma frase negativa:

"Você não me buscaria um copo d'água?"

Menos com a intenção de gentileza, e mais com o intuito de generalizar a ordem, placas ou cartazes – do tipo "Favor não fumar" ou "Não pisar na grama" – empregam formas do infinitivo também em sentido não literal, com o valor de imperativo.

O futuro como hipótese

O futuro é, por natureza, incerto. Diferentemente do passado, que pode ser polêmico, mas foi único, o futuro, por motivos óbvios, se presta a toda sorte de conjecturas. Talvez, por isso, seja comum que os tempos verbais do futuro apareçam empregados com valor, não propriamente temporal, mas antes lógico, para expressar um fato de ocorrência incerta, uma hipótese. O fato é particularmente notável com o futuro do pretérito, sobretudo o composto:

O Comem (Conselho Municipal de Entorpecentes) de Florianópolis (SC) denunciou ontem que o comerciante J.M.C.,34, teria sido torturado nas dependências da 1ª Delegacia de Polícia, no centro da cidade. (Folha de S. Paulo, 30/11/95)

No enunciado, a forma "teria sido" (futuro do pretérito composto do indicativo) é utilizada para apresentar um fato possível, mas ainda não comprovado. Precavido, o jornalista opta pelo futuro do pretérito, que expressa uma hipótese, não algo realmente confirmado.

Apesar de um pouco menos frequente, também o futuro do presente pode expressar fatos incertos:

"Júlia é uma dessas pessoas que escondem a idade. Parece adolescente, mas não terá menos que 45 anos."

Já que "Júlia esconde a idade", o autor da frase não tem realmente certeza quanto à idade correta dela. Assim, usa o futuro do presente, não para designar um fato de ocorrência futura, mas para expressar uma dúvida sobre esse fato.


POR QUE FUTURO DO PRETÉRITO?


Modernamente, o tempo verbal denominado "futuro do pretérito" é mais utilizado em sentido não-literal, para expressar hipóteses. Daí, inclusive, que gramáticas até aproximadamente os anos 60 o denominassem de tempo ou modo "condicional", terminologia, aliás, ainda relativamente corrente.

A denominação futuro do pretérito se afirmou por influência do gramático e filólogo brasileiro Manuel Said Ali (1861-1953). Ele observou que, em sentido literal, esse tempo expressa algo que, em relação a nós, encontra-se no passado, mas é futuro em relação a outra ação ou estado. Confuso? Nem tanto. Veja o exemplo:

"Em 1814, Napoleão foi deposto, mas em 1815 ele voltaria ao poder."

A frase narra dois fatos históricos. O segundo deles, ocorrido em 1815, é passado em relação a nós. Mas é futuro em relação ao primeiro evento, de 1814. Daí o emprego – em sentido literal – da forma "voltaria", no futuro do pretérito, ou seja, como expressão do futuro em relação a um passado anterior.
(Discutindo Língua Portuguesa. Ano 1, nº 5)

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